Era noite cerrada, céu estrelado lá fora, a estrada cobria-se de geada, o frio adormecia uma escuridão que escondia inúmeros segredos.. ela entrava naquela casa , cheia de recordações, e um nervoso miudinho, crescente , apoderava-se de si sem qualquer hesitação. perante a sua família, era uma actriz perfeita, fingindo uma calma , uma serenidade absolutamente imperturbável. olhava o relógio de parede , na cozinha, desejando que o tempo estivesse do seu lado, escutava distraídamente as conversas dos seus pais, que teimavam em demorar-se ali, junto à lareira, naquele conforto preguiçoso. discretamente, trocava olhares preocupados com a sua irmã, a maior cúmplice, na verdade a única pessoa que sabia dos seus planos para aquela noite. finalmente , passava já da meia noite, a casa adormeceu, num silêncio que escondia todos os seus segredos, e ligou-lhe, dizendo apenas "podes vir".iniciou então um período de espera, que lhe pareceu eterno.. a adrenalina crescia, o corpo tremia, o coração batia freneticamente, o nó no estômago aumentava sem cessar.. até que ele chegou. ela sentiu os seus passos suaves, que subiam o jardim, silenciosamente, num crime perfeito, sem provas, sem rastos.
a rapariga aproximou-se da porta, invadida por uma vontade impossível de gritar , dizer ao mundo , revelar o seu sentimento, ignorar aquele lar completamente adormecido. respirou fundo, abriu a porta, nem sentindo o frio intenso que vinha do exterior: quando o viu, oh, quando o olhou, o vento que soprava por entre aquelas terras era uma ilusão, era apenas um detalhe insignificante, pois ela fervia, sentia-se de novo aconchegada, numa segurança difícil de descrever. ele, arrepiado com o frio e com o momento, abraçou-a imediatamente,apertou-a bem nos seus braços, pousou a face gelada nos seus ombros, e beijou-a ao de leve no pescoço, sem pressas, sem tempo.
ela pegou-lhe na mão, levando-o para o quente da cozinha , " ficamos aqui.. aquece-te, estás congelado. obrigado por teres vindo, eu.." enquanto se explicava, ela esforçava-se para reacender o lume, do qual restavam apenas umas brasas, fracas.. ele riu-se, sorriso brincalhão " tu, meu amor, não tens jeito nenhum para isso. deixa-me ajudar-te , tola. nota-se mesmo que és da cidade" "estúpido" ripostou ela, rindo-se .
em segundos, a lenha crepitava de novo_ele observava-a, sedutor , orgulhoso do que tinha feito, provocando-a "se não fosse eu , morríamos ao frio"
"desculpa ? se eu não te trouxesse aqui para casa, aí sim, congelávamos. a ver se queres que te ponha na rua."
"tu és sempre tão má. não vês que quero estar aqui contigo?
"ai queres? não se nota"
"nunca conheci ninguém como tu. és tramada, sabias ? vem cá "
puxando-a para o seu colo, ele aproveitou cada toque dos seus corpos, cada pedaço de pele que se roçava,por entre as suas roupas frescas, inadequadas àquele inverno rigoroso. mantendo-a bem perto de si, perguntou-lhe "não tens frio ? pareces-me tão pouco agasalhada.. "
"cala-te, eu estou bem. não ves que não tenho frio?"
"ah, isso é só porque eu estou aqui"
"odeio-te"
com estas palavras, ele prende-a num beijo longo, apaixonado, perdido no tempo.. compreende-a, conhece-a há tantos anos, ninguém melhor que ele para entender que aquele "odeio-te", era afinal um "amo-te", escondido por detrás de um mau feitio que o cativava. ela, enfeitiçada pelo amor que sentia, não mais se voltou a preocupar com a possibilidade de ser apanhada pelos seus pais, de repente, com aquele namorado proíbido, aquele estranho, completamento clandestino na sua casa de campo.
repentinamente, ele pega num relógio velho, que marcava o seu compasso exacto, segundo a segundo, pousado na bancada ao lado da lareira.
surpreendeu-a, retirando a pilha que o fazia trabalhar
"o que estás a fazer ? precisamps de saber as horas.." avisou-o, voz terna de menina
"parar o tempo"
"lá estás tu com as tuas tretas..a tentar enganar-me com as tuas habilidades , com essas frases manhosas"
"vê um bocadinho de honestidade em mim , vá lá."
"está bem, mas .. e se não nos damos conta de que as horas passam, e se adormecemos, e se.. ?"
"perde-te no tempo."
"como consegues deixar-me assim ? eu bem tento, mas contigo, perco toda a minha racionalidade.. pedes-me para me perder no tempo, mas só me fazes perder a cabeça"
"então perde.. perde tudo, não quero saber. só não me percas a mim"
"lá estás tu , tu e o teu romantismo.. era suposto ser eu a lamechas. caramba, és mesmo .. és mesmo otário.
eu nem sei. dizes-me essas coisas, e eu , e eu.. fico assim.. sem sentido, a tremer . sou tão parva. "
abraçaram-se,de pé, em frente àquele fogo brando, em frente aquela fogueira que os iluminava. aquela luz, aquele fogo , que culminava numa paixão intensa, que ia para além dos limites do seu pensamento, da razao, ultrapassava a linha da ciência, do racional.
naquela noite , ela baixou todas as suas defesas, e entregou-se ao irreparável.
"amo-te"
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